quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

CORTEGAÇA DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX

O foral de Cortegaça
“Forais” são documentos em que se encontram expressos os direitos, as obrigações, os impostos, as isenções e regalias duma terra.
Devido aos forais velhos (escritos em latim ou linhagem antiga) serem dificilmente compreendidos, o Rei D. Manuel I, com o propósito de “remediar” essas questões, depois de mandar rebuscar os arquivos e de ouvir os concelhos e seus representantes, decidiu passar novas cartas, ou seja, fazer de novo os forais das cidades, vilas e lugares de seus reinos.
Cortegaça, honra a partir de D. Sancho I e couto seguidamente, tinha conseguido bastantes isenções e regalias, e tudo isso não foi esquecido quando D. Manuel I encarregou Fernão de Pina de reformar todos os forais. As informações referentes ao couto de Cortegaça foram prestadas pelo mordomo de então, Álvaro Fernandes, e ficou resolvido “por não se fazerem mais leituras em outro fora” que se aditassem as suas disposições particulares no de Pereira Jusã (Ver história de Válega; outrora um concelho, extinto em 28.12.1853, agora apenas um lugar da Vila de Válega, concelho de Ovar). Reza assim o documento:
“E por quanto o Couto de Cortegaça é anexa desta terra de Pereira Jusã, por não se fazerem mais leituras em outro foral, havermos por bem de pormos as cousas dele neste no qual os direitos pessoais são tais como os atrás conteúdos e os outros foros que mais pagam são os seguintes, convém a saber: tem aí o senhorio certos casais emprazados em vidas pelos preços e foros em seus títulos declarados, segundo os pagarão adiante sem outra inovação.
E pagarão mais ao senhorio estes sobreditos seus casais e outros que aí há de Grijó e uma cobrada de Cucujães, todos juntamente, por repartição entre eles feita, setenta e três alqueires de trigo, dos quais levará o senhorio vinte e quatro e Grijó outros vinte e quatro, a condessa pela quinta de Vila Chã doze e Joana Mendes da Feira, de Montados, cinco e o juiz e o porteiro outros cinco e o focinho de cabrito um e meio e o Lorvão um e meio e assim paga cada casal povoado dez reis”.
O foral refere ainda a “pena de armas” (ou de sangue), multa aplicada a quem matasse ou ferisse uma pessoa, e custava, nesse tempo, 120 reais, pertencendo ao Rei cobrar essa importância, e ao juiz, as armas, se as tomasse em flagrante delito.

Teotónio da Silva, abade de Cortegaça e um litígio sob os Filipes
O Mosteiro de Grijó continuava a exercer o seu direito de padroado, e quando precisava, escolhia o nome ou nomes dos que pretendiam apresentar à confirmação para abades de Cortegaça. A 18 de Março de 1567, depois de ter prestado provas e de Gaspar Fernandes, o primeiro candidato, não ter sido admitido, Teotónio da Silva, natural de Coimbra, requereu que fosse dada execução ao despacho episcopal (que a 13 de Março, D. Rodrigo Pinheiro havia dado para a sua “colocação” em Cortegaça), comprometendo-se a receber todas as ordens dentro de um ano, a guardar a Fé Católica, a obedecer ao Bispo e à Igreja, a pagar inteiramente todos os direitos a que estava obrigado como abade, a receber, de boa mente, os procuradores encarregados das rendas e foros, a comparecer nos sínodos, a residir em Cortegaça…
No entanto, nem sempre os abades que o Mosteiro de Grijó apresentava para a Igreja de Cortegaça mereciam a confiança que os frades neles depositavam. E por vezes, surgiam questões que os tribunais eclesiásticos e seculares tinham de dirimir, como em 1600, em que o Rev. Pe. Manuel Alves foi acusado de não querer pagar a colheita de 1592. O Tribunal mandou, sob pena de excomunhão, notificar o réu, para liquidar não só as colheitas em atraso, mas ainda as custas do processo.
O mais “mediático” caso foi o que ocorreu em 1629, em pleno reinado de Dom Filipe. O processo ocorreu no Tribunal da Relação, no Porto, e opunha o Ver. Prior e Religiosos de Grijó contra o lic. Pantaleão da Costa, acusado de se recusar a pagar as colheitas aquele Mosteiro. Tentando Pantaleão da Costa transferir as competências do julgamento para o Vigário da Diocese, e tendo depois ainda recorrido do despacho que não lhe deu razão, acabou por pagar caro a teimosia, pois este Abade viu-se na necessidade de entregar à justiça, para garantia de liquidação das custas do processo, um gomil de prata lavrada, para além de se ver ainda obrigado a entregar à penhora um pinhal que tinha no rio de Mourão e, por fim, lá foi a Grijó pagar 3.500 réis.
Ainda mais tarde, um outro Pantaleão, mas desta vez Fernandes, de Aveiro, foi obrigado pelos tribunais a restituir aos abades de Grijó, os bens que adquiria em Cortegaça, sem prévia autorização do Mosteiro, que eram propriedades do casal de António Anes.

Cortegaça na casa do Infantado
Aquando da morte de D. Fernando Forjaz Pereira (1700), os bens da Casa do Condado da Feira foram integrados, por D. Pedro II, na Casa do Infantado. Isto levou a que muitos casais do Couto de Cortegaça deixassem de pagar as suas rendas. Mas esta situação veio a terminar, pois em 30 de Setembro de 1755, o Procurador do Condado requereu que se averiguassem quais os casais de Cortegaça que deviam foros e rendas que não pagavam à 40/45 anos. Este atraso ou esquecimento ter-se-á devido à má vontade de D. João V contra o seu irmão, o infante D. Francisco, então na posse e usufruto dos bens da Casa da Feira.
Descobriu-se que o livro onde constavam os prazos e rendas que os caseiros de Cortegaça teriam que levar à casa da Feira havia desaparecido e se tais rendas não se pagavam à mais de 40 anos era porque os cortegacenses dizerem que os rendeiros exigiam mais do que o que deviam, por direitas contas. O juiz do Tombo dos bens e rendas pertencentes ao Estado e Casa da Feira, Dr. Domingos dos Santos Ramalho, deslocou-se ao Couto de Cortegaça em 30 de Maio de 1756 e, na residência do Abade do mesmo Couto, Rev.. João de Brito Cardoso, na presença de mais alguns cortegacenses, nomearam Manuel Francisco da Cruz, do lugar da Cruz, para medir e lançar a renda que cada casal merecesse pagar à Casa da Feira.
Durante algum tempo foram medidos os casais, terras, maninhos, moinhos e cortinhas do Couto de Cortegaça e foram lançadas novas rendas, como era desejo dos fregueses. Destas medições, confrontações, arrendatários e respectivos foros, existe um grosso in-folio na Torre do Tombo e outro nos arquivos da Vila da Feira.

Após o terramoto de 1755
Por ordem do Bispo do Porto, D. Frei António de Távora, procedeu-se a uma Inquisição Paroquial em Cortegaça. Da resposta do Abade de Cortegaça, em 1 de Abril de 1758, extraem-se os seguintes apontamentos:
Cortegaça pertencia, nessa altura, à Província da Beira-Baixa, ao Bispado do Porto, à Comarca de Esgueira e ao Termo da Feira. Ficava nas terras do Condado desta Vila (então Casa do Infantado). Estava (e continua actualmente a estar) contígua com as freguesias de Esmoriz, Maceda e Rio Meão. O Couto de Cortegaça delimitava a poente com suas ribeiras que as areias do mar tornavam, a pouco e pouco, incultas.
A Paróquia tinha 177 vizinhos, que perfaziam 632 pessoas e constava de nove aldeias-Monte, Mourão, Pedreira, Rio, Cancela, Covelo, Gavinho, Cortegacinhas e Igreja.
Cortegaça tinha juiz ordinário que servia de juiz dos órfãos, almotacé e vereador, e havia audiência para primeira admissão dos litígios. O juiz de Cortegaça tinha um procurador do povo que era da terça de Sua Magestade, estando sujeito ao ouvidor da Feira. Não havia correio, por isso o povo de então tinha de recorrer aos serviços postais da Vila da Feira, que distavam a 5 kms de distância.
Nas contas do Abade, quatro léguas separavam Cortegaça do Porto e quarenta e oito léguas de Lisboa, prestando ainda o Abade curiosas informações sobre rios, açudes, fontes, moinhos, pontes e produções de terra e que ainda hoje são conhecidos com o nome desse tempo, como por exemplo o Rio “das Cabras”, o Rio “da Igreja”, o Rio “das Ponte”, a “Fonte Fria”, merecendo-lhe esta particular atenção, pois na sua opinião as suas águas eram “salutíferas”.
Quanto à pesca, refere que os “habitadores” de Cortegaça lançavam as suas redes no Verão, quando o mar o permitia, mas que ao contrário de outros tempos, quase sempre o seu trabalho saía frustrado, pelas diminutas colheitas. As produções eram essencialmente de milho grande ou milhão, cuja cultura não satisfazia as necessidades dos habitantes de Cortegaça, tendo que o comprar fora. Em pequena escala semeava-se ainda trigo, centeio, cevada e aveia. Alguma fruta: peras, ameixas, peros pipos. Vinho, pouco e de qualidade “virídica”. O gado comprava-se noutras terras e a caça que aparecia resumia-se a coelhos, lebres, perdizes e, no tempo, as rolas.
Segundo o referido Padre João de Brito Cardoso, quem olhasse de Cortegaça para nascente, devisava o Castelo da Feira.

SÉCULO XIX
Foi em 5 de Julho de 1826 que foi criado um lugar e dado o termo de ajuramento e posse ao primeiro professor régio de primeiras letras do couto de Cortegaça, de seu nome António Joaquim Marques de Castro. O ensino que hoje se chama primário era ministrado antigamente por “mestres de ler”, e o seu aprendizado fazia-se nos conventos, nas Igrejas Paroquiais, nos recolhimentos, na corte, nas casas nobres e burguesas, etc. Apesar das diversas tentativas de implementação de várias reformas para tentar alargar o ensino a todos, a verdade é que em 1910 se apurou haverem 76,1 % de analfabetos. Contudo, por se reconhecer ao Couto de Cortegaça uma certa projecção (já que o abade da altura, D. José Maria Salgado de Noronha e Pina, era cónego regular da Sé do Porto) não houve pejo em se criar um lugar para professor de primeiras letras.

O Real da água era um imposto sobre a carne, o peixe e o vinho, a que se lançava mão sempre que necessário para aumentar os dinheiros do erário, quer municipais, quer do Rei. Este imposto serviu, inicialmente, para a construção de obras de condutas de água às cidades (daí o seu nome), chafarizes e abastecimento de água. Competia às Câmaras (e por isso à do Couto de Cortegaça também) o encargo da cobrança e da administração, mas o produto desse imposto revertia, em parte, para a coroa. A história deste imposto vai desde o reinado de D. João I até à República que o aboliu. Através do “Livro de manifestações do Real de Água, ficou-se a saber quem eram os taberneiros e marchantes do Couto de Cortegaça, quantidades de vinho e de carne consumidas, bem como do rendimento do respectivo “Real da água”.

A efémera Câmara Municipal de Cortegaça teve o seu auto de nomeação e de posse da sua comissão em 13 de Maio de 1834, tendo-se deslocado a Cortegaça o sub-Prefeito interino da Feira, Manuel José da Costa e Sousa, para empossar a Comissão Municipal do Couto de Cortegaça, que ficou assim constituída:
Presidente – António Joaquim José da Silva, do lugar do Gavinho
Vereador – Manuel Marques de Sá, de Cortegacinhas
Procurador, com voto – Manuel Francisco de Sá, do Monte
Secretário – José Ricardo Correia de Resende
Provedor do Concelho – Joaquim José de Oliveira Cardoso, do Gavinho
Juiz para o Governo Civil – Manuel Rodrigues da Silva, da Pedreira
Curiosamente, apenas um ano depois destas nomeações é que foi publicado o diploma legal da Nova Reforma Administrativa, onde aparece o Concelho de Cortegaça. As sessões da Câmara sucederam-se até 17 de Outubro de 1835, altura em que a Câmara deixou de funcionar, ou em que, pelo menos, deixou de lavrar mais actas. Todavia, apenas pelo Decreto de 6 de Novembro de 1836 é que foi extinto o Concelho de Cortegaça, conjuntamente com mais outros 465 pequenos concelhos que entretanto também se havia criado.

Nos meados do século XIX, Cortegaça não tinha correio (ia buscá-lo à Feira), nem médico, nem cirurgião, nem farmacêutico, nem estabelecimentos fabris, nem feira, nem mercado, nem homens ilustres por feitos de armas, letras, inventos ou descobrimentos notáveis. Não tinha monumentos, nem sequer escolas. A Junta de Freguesia possuía “uma pequena mata”, de pinheiros, para proteger as culturas das areias do mar.

O concelho de Ovar, que esteve dependente durante algum tempo da Comarca de Aveiro, existiu sozinho durante muitos anos, mas aos poucos foi recebendo algumas freguesias, pela seguinte ordem:
1 – Pelo Decreto de 28 de Dezembro de 1852, recebeu as freguesias de Válega e S. Vicente de Pereira;
2 – Pelo Decreto de 31 de Dezembro de 1853, recebeu a freguesia de Arada;
3 – Pela Lei de 21 de Junho de 1879, recebeu as freguesias de Esmoriz, Maceda e Cortegaça;
Estas três últimas freguesias eram bastante cobiçadas por Ovar, mas a sua anexação deu lugar a um longo processo, onde não faltaram intrigas, promessas e representações dos povos interessados.
A Feira não estava interessada em ver fugir estas três freguesias e em 20 de Novembro de 1962 agradeceu publicamente os serviços de uma sua Comissão que havia enviado a Lisboa, para fazer valer os direitos da Feira e pugnar pela conservação destas três freguesias à beira-mar. Mas em finais de 1871 e princípios de 1872, representações de Esmoriz, Cortegaça e Maceda, solicitaram, a quem de direito, a sua anexação a Ovar. Em sessão de 15 de Novembro de 1972, a Câmara da Vila de Ovar, não deixou de verberar a posição assumida pela Feira, e esclareceu que embora deseje o aumento do Concelho, não precisa dessas freguesias para viver. Disse ainda que os argumentos da Feira são apenas argumentos de quem se vê em dificuldades para “impugnar a vontade dos seus administrados que desdenham a sua administração e a quem abandonar”.
Ovar continuava a esforçar-se por aumentar a sua Comarca, já que havia grande desigualdade entre a Comarca de Ovar (com apenas 4 freguesias – Arada, Válega, Ovar e S. Vicente de Pereira - o que correspondiam a 4571 fogos) e a Comarca da Feira (com 37 freguesias, que correspondiam a 9290 fogos) e mesmo em relação à Comarca de Estarreja (com 9 freguesias e 7132 fogos). Por isso, a pretensão de anexar Esmoriz, Cortegaça e Maceda, e ainda o facto de a facilidade de transporte (caminho de ferro e uma estrada que se projectava continuar até Esmoriz) era plena de sentido e validade.
Todas estas diligências levaram a que estas três freguesias fossem anexadas à Comarca (atenção, Comarca, não Concelho!) de Ovar pelo Decreto de 23 de Dezembro de 1875, o que fez com que no dia 6 de Janeiro de 1876, o povo de Ovar e das três freguesias saíssem para a rua, em grandes festejos e celebrações, traduzindo o quanto ansiavam por esta união. Mas não ainda satisfeitos e lutando pela anexação ao Concelho de Ovar, foram enviadas novas “representações” assinadas por representantes das três freguesias, solicitando a tão desejada anexação, o que levou à Câmara da Feira a, tentando impugnar esta pretensão, ordenar um auto de investigação, o que fez com que as três juntas tivessem que se deslocar à Feira para prestar declarações (a de Maceda fê-lo a 19 de Fevereiro, a de Cortegaça a 20 e a de Esmoriz a 23, de 1877). Para além das assinaturas a pedir a anexação, a construção da estrada de Ovar até Esmoriz serviu de base para o processo que serviu de base para o Projecto de Lei n.º 75 B, apresentado à sessão legislativa pelo Ministro de Estado dos Negócios do Reino, contra o qual o projecto a Edilidades e o Administrador da Feira fizeram uma representação à Câmara dos Deputados, em 1879, protestando a anexação de Esmoriz a Ovar.
De nada valeram os protestos da Feira e a Lei que finalmente anexou as freguesias de Esmoriz, Maceda e Cortegaça, foi aprovada em 21 de Junho de 1879, publicada no Diário do Governo de 2 de Julho do mesmo ano.

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